Nostalgia

Á sombra de uma sombra

Almas sem corpo, corpos sem alma, múmias sem desejo deambulam entre nós, tédio. Uma imagem parada, um objecto esquecido, uma cidade inanimada. Pessoas que são sombras, ruínas que se degradam, sonhos, memórias imaculadas, a beleza.

Sentados numa velha cadeira, numa sala parada no tempo com as paredes degradadas, onde o papel de parede já esta amarelado, á luz daquele velho candeeiro bebemos um vinho e saímos desta rede que nos aprisiona. Uma porta para o passado e para o futuro abre-se á nossa frente, como a porta que Alice encontra, que se abre para o país das maravilhas. A procura da verdade? A procura de um ideal? Uma ilusão? É um excelente passatempo, arte.

O instante será realmente eterno? Ou o pitoresco vai desbotando? A eternidade será realmente o instante?

Nostalgia, o devaneio de um sonhador fora do seu mundo próximo, diante de um mundo infinito, o seu. Será uma lembrança? Pura imaginação? Nunca a vemos começar, menos ainda sabemos porque começa. Foge imediatamente para longe e sem aviso, como um clarão intelectual para o espaço do além, bem dentro de nós. Dentro destas ruínas degradas, que um dia tiveram o seu auge, o seu tempo.

A imensidão está em nós, como uma espécie de expansão de ser que a vida nos oferece, mas que a prudência detém, pela sua carga solitária e auto-destrutiva. 

Somos senhores do nosso mundo, nós criamos, nós destruímos, Homens ilimitados.

Temos uma capacidade inata para imaginar e recordar lugares. A percepção, a memória e a imaginação estão em constante interacção, o domínio da presença funde-se com imagens de memória e fantasia, como escreve Milosz em L`amoureuse initiation, “Eu contemplava o jardim de maravilhas do espaço com o sentimento de olhar o mais profundo, o mais secreto de mim mesmo; e sorria, pois nunca me imaginava tão puro, tão grande, tão belo! Em meu coração irrompeu o canto de graça do universo. Todas essas constelações são tuas, estão em ti; não têm qualquer realidade fora do teu amor! Ah, como o mundo parece terrível para quem não o conhece! Quando te sentires sozinho e abandonado diante o mar, imagina como deveria ser a solidão das águas na noite, e a solidão da noite no universo sem fim!”


Em Walden, Thoreau escreve “Um lago é o traço mais belo e expressivo da paisagem. É o olho da terra, onde o espectador, mergulhando o olhar, sonda a profundidade de sua própria natureza.” Estas breves palavras fazem-nos lembrar o filme Nostalgia de Andrei Tarkovsky, onde o lago assume um papel essencial na composição, pelas suas capacidades reflectoras, pelo misticismo e simbologia a ele inerentes. 

Este “quadro” de Tarkovsky remete-nos também para a ideia de casa, o abrigo protector da severidade do tempo e dos agentes naturais, mas também do mundano e do superficial, dessa exterioridade sempre vista como nociva. Este refúgio do ser, está inteiramente relacionado com o termo nostalgia, que na sua origem nasceu da junção dos radicais gregos νόστος: voltar a casa e άλγος: sofrimento. Referindo-se ao desejo sofredor de regressar a casa, ao conforto das nossas memórias contidas nos objectos, nos cheiros, nas texturas, nos sons.

A nostalgia é a idealização do mundo sensível, filtrado pela memória pessoal que procura em cada apreensão do real, ver o invisível, sentir o inteligível, do mensurável ao incomensurável, relacionando-o com experiências perceptivas já vividas, memórias. E não há refúgio ou abrigo onde a plenitude da nostalgia se sinta mais intensamente que no sentimento que designamos por Amor.

João Pedro Barbosa